minha infância durou
três fitas VHS
dois álbuns de fotos
a gestação do meu irmão
uma visita ao zoológico
e a amálgama dos verões
em Pessegueiros —
o princípio da correspondência
olha pra cima
tá tudo aqui embaixo —
a danação e
a vergonha e
a vontade
e a expectativa
eis que um dia você descobre que
não existe
emoção que dure mais que um instante
que a felicidade é tímida e imprevisível
e vem quando quer
fica pouco
não sente saudade
que a tristeza
sabe quase nada de qualquer coisa
e você faz o que pode com o que há —
é um conselho —
eu lembro de já ter ouvido
a vida não é mais que uma amargura frequentemente interrompida
celebrações não duram como o luto
e toda epígrafe
é também um epitáfio
não se apegue
as alegrias
e os rasgos no lençol
têm a mesma razão de ser
se os mortos não dançam
por que contê-los
em caixões tão apertados?
se não doem
por que largá-los sozinhos—
e queimá-los?
se os mortos não fogem
por que trancar
os portões do cemitério?
se nada levam,
não obstante,
nada fica —
se se vão,
de fato,
e não voltam —
nunca mais voltam — ,
e, se voltam,
são outros —
por que as flores,
as missas
e os regalos?
se não mais perambulam
pela casa silenciosa e escura
na expectativa de encontrar a resposta duma pergunta que nunca foi feita,
respondendo o que nunca lhes foi perguntado,
tocando os dias como se em dívida com o mundo
e como se o mundo lhes devesse algo,
se não mais se dirigem ao céu —
exasperados —
se não anseiam,
não suplicam,
todos os dias,
por sentir qualquer outra coisa que não angústia,
se não amam
e não espreitam —
mesmo quando
estão atrás de mim —
por que, então,
enterrar os mortos tão fundo?
Anna Carolina Rizzon nasceu no Rio de Janeiro, cresceu em Teresópolis e se exilou em São Paulo. É incompetente em diversos segmentos artísticos, mas insiste mesmo assim. Especialmente na escrita. Colabora com a Fazia Poesia e a Revista Úrsula e posta aleatoriedades nos blogs vOltas e h a v e r e s.